Mercado Editorial Brasileiro - Agonia e salvação


Por Beatriz Velloso - Revista Época

Pesquisa inédita revela que o setor de livros no Brasil é frágil, mal organizado e desprezado. Mas é possível reverter o quadro. O faturamento das editoras brasileiras caiu 48% entre 1995 e 2003 e a quantidade de exemplares vendidos no mercado diminuiu 50%. O mercado editorial brasileiro é um Mercedes circulando com rodinhas de rolimã. A metáfora é usada pelos professores Fábio Sá Earp, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e George Kornis, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Juntos, eles acabam de finalizar a pesquisa mais completa e detalhada sobre o universo do livro já feita no Brasil. O estudo demorou um ano e meio para ficar pronto, e foi bancado pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, o BNDES.

A idéia é usá-lo para definir novas políticas de investimento no setor. Os resultados serão divulgados oficialmente na quinta-feira 16, no Rio de Janeiro, durante a abertura da Primavera dos Livros, feira na qual títulos de pequenas e médias editoras são vendidos com descontos. ÉPOCA antecipa os números e as conclusões - nada animadoras - dos pesquisadores. Segundo Earp e Kornis, o panorama é nebuloso.

Reunindo as estatísticas aferidas anualmente pela Câmara Brasileira do Livro e pelo Sindicato Nacional de Editores de Livros, comparando-as às de dezenas de outros países, entrevistando editores, livreiros, donos de gráficas e bibliotecários, os professores chegaram ao consenso de que nosso mercado editorial é completamente incompatível com o tamanho e a importância do país. ''As editoras ainda são negócios familiares, por vezes muito amadores, praticamente empresas de fundo de quintal quando comparadas a organizações profissionais do exterior'', afirma George Kornis, professor de Políticas Sociais da Uerj.

Segundo Earp, coordenador do Grupo de Pesquisa em Economia do Entretenimento da UFRJ, o Brasil tem uma das piores políticas de bibliotecas públicas do mundo. ''As compras do governo são muito tímidas, precisam ser triplicadas. Todo o processo editorial brasileiro é atrasado. E a leitura, infelizmente, ainda é considerada frescura por aqui.'' O trabalho pretende acabar com essa visão do produto: livro, afirmam os estudiosos, é gênero de primeira necessidade.

''O desempenho do mercado editorial deve ser tratado como um problema para o país, precisa virar uma dor de cabeça'', afirma Kornis. De fato, problemas aparecem ao longo de toda a pesquisa. Há dados assustadores. Um deles mostra, por exemplo, que entre 1995 e 2003 o faturamento das editoras nacionais diminuiu 48%, e a quantidade de exemplares vendidos caiu pela metade. É verdade que, no mesmo período, a economia como um todo teve desempenho medíocre. Mas no mercado do livro os resultados ficaram muito aquém do resto. ''Uma queda desta proporção seria fatal em qualquer outro setor'', acredita Earp.

O maior grupo editorial do mundo, o alemão Bertelsmann, tem receita anual de US$ 9 bilhões. Todo o mercado editorial brasileiro fatura, por ano, US$ 900 milhões.

É preocupante, também, a quantidade obscena de livros encalhados, cujo destino muitas vezes é ser picotado para reciclagem de papel. Só em 2003, 44 milhões de unidades não foram vendidas - 15% da produção total. Os exemplares poderiam ser comprados a preços mais baixos para bibliotecas. Só que isso não acontece. ''As editoras parecem preferir os livros no porão a ter de baixar o preço'', lamenta Kornis.

O preço médio do livro no Brasil é US$ 2, contra US$ 7 no Japão. Mas, com um valor igual a sua renda per capita, um brasileiro poderia comprar 1.500 exemplares por ano, contra 4 mil de um japonês.
A falta de organização do setor também não condiz com a importância do produto. As grandes casas de publicação nacionais não têm o hábito de fazer pesquisas de mercado. Trabalham com a garantia de que quatro ou cinco títulos vão vender como best-sellers a cada ano - e assim compensar o comportamento quase sempre insatisfatório de centenas de outros lançamentos. ''É inacreditável'', continua Kornis, ''que um empresário se proponha a trabalhar com uma margem de erro tão cavalar.'' Comportamento semelhante em outras atividades certamente levaria qualquer negócio à bancarrota.

Há, é claro, a velha e procedente reclamação de que o livro, no Brasil, é muito caro. Na verdade, quando ä comparado ao preço de outros países, o valor médio do exemplar brasileiro é até pequeno (US$ 2,50 contra US$ 14 nos Estados Unidos e US$ 10 na Austrália). Mas, por aqui, a renda é muito inferior: na hora de escolher o que sai do orçamento doméstico, o livro está no topo da lista de itens dispensáveis.

Earp explica que as tiragens são muito pequenas, e isso encarece o produto. Mas há inúmeras maneiras de baratear o processo. ''É inconcebível que, num país do tamanho do Brasil, uma remessa de livros saia de São Paulo e tenha de ir de caminhão até o Acre'', afirma. ''Com a tecnologia de hoje, é possível abrir gráficas em outros Estados, enviar as provas dos livros por computador e imprimir os exemplares no local. É uma forma de gerar emprego e baixar o preço final.''

O levantamento revelou ainda algumas curiosidades. Da pesquisa surgiu, por exemplo, o gigantesco mercado de venda no sistema de porta em porta - cuja oferta é centrada basicamente na Bíblia e em títulos religiosos. Enquanto todas as editoras do país reúnem 22 mil funcionários, os vendedores que circulam pelas ruas somam mais de 30 mil pessoas. ''É um exército silencioso, que a gente quase nunca vê'', explica Earp.

O Brasil produz 340 milhões de exemplares por ano e a França 410 milhões. Mas a população brasileira é três vezes maior que a francesa.

Culpar os índices de analfabetismo (no país, 15 milhões de pessoas com mais de 15 anos de idade não sabem ler) pelo cambaleante equilíbrio do setor é desculpa esfarrapada. ''Milhões de brasileiros alfabetizados não lêem porque não são estimulados, ou porque vivem em cidades onde não há bibliotecas'', diz Earp. Segundo levantamento recente da Unesco, cerca de mil municípios brasileiros não têm sequer uma coleção pública - o equivalente a 19% das cidades do país. Está aí o grande abacaxi a ser descascado pelo atual governo. Mas há um alento: é possível fazê-lo. É preciso dinheiro.

O Ministério da Cultura já separou R$ 25 milhões de seu orçamento para o Plano Nacional do Livro e Leitura, apelidado de Fome de Livro, e promete zerar o número de municípios sem bibliotecas. O programa prevê ainda uma redução nos tributos do setor editorial e parcerias para compra de exemplares para bibliotecas (duas formas de aumentar as tiragens). Mas os autores da pesquisa sugerem que se faça mais.

Todos os anos, o governo americano compra 677 milhões de livros para estudantes e 113 milhões para bibliotecas. No Brasil, os números caem para 176 milhões de exemplares para estudantes e quase nada para bibliotecas.

A criação de um vale-livro, uma espécie de subsídio para estudantes e professores.

universitários semelhante ao vale-transporte, é uma idéia. Outro incentivo viria de uma linha de crédito de R$ 50 milhões para editoras e - mais importante - da criação de uma ''agência regulamentadora'' para o setor. Sabendo que a simples menção desse termo causa arrepios, Kornis se apressa em esclarecer: ''Não estamos pregando o dirigismo''. A proposta, diz, é encontrar um equilíbrio entre ''a barbárie do mercado e o estatismo furioso'', usando a agência para mediar discussões entre os envolvidos no processo. Sonha-se com o dia em que tudo se resolva a contento, os números possam ser deixados de lado e a maré esteja boa o suficiente para fazer o que realmente interessa: ler.

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