Como escrever com estilo - Kurt Vonnegut

Kurt Vonnegut
Repórteres de jornais e redatores técnicos aprendem a ser impessoais em seus textos. Isso os torna uma espécie estranha no mundo dos escritores, pois quase todos os outros infelizes que lidam com canetas, papel e máquinas de escrever — habitantes desse mesmo universo — revelam muitas características pessoais por meio de suas obras. Intencionais ou não, tais revelações, são denominadas “elementos de estilo”.

Eles nos permitem saber, na condição de leitores, algo sobre o tipo de pessoa a quem estamos dedicando tempo. O autor pode nos parecer ignorante ou bem-informado, tolo ou brilhante, vigarista ou honesto, sem senso de humor ou brincalhão, e assim por diante.

E você? Por que analisar seu próprio estilo de redação, com o objetivo de aprimorá-lo? Bem, isso é um sinal de respeito por seus leitores, qualquer que seja o tema de seus textos. Caso você garatuje seus pensamentos sem maior cuidado, seus leitores com certeza sentirão que você não se preocupa muito com eles. E vão marcá-lo como um ególatra ou obtuso — ou, possibilidade ainda mais trágica, simplesmente deixarão de ler seus escritos.

A revelação mais comprometedora que um autor pode fazer sobre si mesmo é demonstrar que não sabe distinguir entre o que é ou não interessante. Isso também acontece quando você lê, não é verdade? Ou seja, você gosta ou não de determinados autores em função, principalmente, do que eles escolhem para lhe contar ou para lhe oferecer como material de reflexão. Algum dia você sentiu prazer em ler um escritor sem idéias, apenas pelo domínio que ele demonstra sobre a linguagem? Decerto não. Por conseguinte, a fim de desenvolver um estilo de efeito, você precisa tomar como base suas  idéias pessoais.

1. Ache um tema de seu interesse

Descubra um tema capaz de lhe despertar interesse e com o qual você  sinta, no fundo, que os outros também deveriam se preocupar. É esse interesse autêntico, e não suas brincadeiras inteligentes com a linguagem, que virá a constituir o elemento mais convincente e agradável do seu estilo.

Não estou espicaçando o leitor deste artigo para que escreva um romance — embora viesse a me sentir feliz com isso. Uma petição dirigida ao  administrador da cidade referente a um buraco à porta de sua casa ou uma carta de amor preencheriam esse requisito.

2. Mas não divague sobre o assunto
Não farei divagações no tocante a este conselho.

3. Seja simples
Agora, quanto ao uso da linguagem: lembre-se de que dois expoentes como William Shakespeare e James Joyce escreviam frases com traços de infantil inocência,  discorrendo sobre assuntos dos mais profundos. O “Hamlet” de Shakespeare pergunta: “Ser ou não ser?” E a palavra mais comprida da frase tem apenas três letras! Joyce, quando se  sentia propenso a fazer brincadeiras era capaz de elaborar uma frase tão intrincada e resplandecente quanto, por exemplo, um colar destinado a adornar Cleópatra. Entretanto, minha frase predileta no conto “Eveline”, de sua autoria é: “Ela estava cansada”. Àquela altura da narrativa, não havia outras palavras que pudessem atingir tão a fundo o coração do leitor quanto esses três simples vocábulos.

A simplicidade da linguagem não é apenas meritória, mas, talvez até mesmo sagrada. O texto da Bíblia começa com uma frase que não foge aos limites de domínio de redação próprios de um adolescente de catorze anos: “E no início criou Deus o céu e a terra” . . .

4. Tenha coragem de cortar

Talvez você tenha também a capacidade de, por assim dizer, tecer colares para Cleópatra. Contudo, sua eloqüência deve ser colocada a serviço das idéias que lhe ocorrem. Valha-se das seguinte regra, fundamental em se tratando de estilo: se uma frase, por excelente que seja, não lança sobre seu tema uma luz que revele um aspecto novo, corte-a.

5. Seja você mesmo
Seu estilo de redação mais natural há de ecoar coisas que você ouviu na sua infância. O idioma inglês era a terceira língua do romancista Joseph Conrad, e grande parte do que parece pungente em seu uso do inglês foi, sem sombra de dúvida, influenciado por sua língua materna — o polonês. Quanto a mim, cresci na cidade de Indianápolis, onde a fala popular soa como uma serra de fita cortando estanho galvanizado, e o vocabulário empregado tem o efeito estético de um pingüim em cima da geladeira. Em algumas regiões mais afastadas dos montes Apalaches, nos Estados Unidos, ainda há crianças que crescem ouvindo canções e expressões da era elisabetana.

Todas essas variedades de discurso são belas, assim como são belas as diversas espécies de borboletas. Não importa qual seja a sua língua materna, você deve sempre dar-lhe grande valor. Se, por acaso, seu idioma não for o do país em que você vive hoje, e se sua língua materna transparecer naquilo que você escreve, o efeito final, via de regra, será encantador.

Eu mesmo percebo, e os outros também, que acredito mais em meus textos quando as palavras soam, com maior fidelidade possível, como o discurso de uma pessoa de  Indianápolis — ou seja, exatamente aquilo que sou. Qual a alternativa? Só aquela insistentemente recomendada pelos professores e, sem dúvida, também imposta ao leitor: a de escrever como um refinado cavalheiro que viveu há um século ou mais.

6. Diga o que pretende dizer
Antigamente, eu costumava me sentir exasperado com professores desse gênero. Agora não mais. Entendo que todos aqueles textos antigos, com os quais eu deveria comparar meus trabalhos, não eram magníficos por serem de  interesse permanente, ou por terem sido escritos por estrangeiros, mas sim porque transmitiam, com precisão, aquilo que seus autores pretendiam transmitir.

Segundo meus professores, eu deveria escrever com precisão, selecionando sempre os vocábulos de melhor efeito e concatenando-os sem dar margem à ambigüidade como peças de uma máquina.

Meus mestres não queriam me transformar num nobre inglês, mas nutriam esperanças de que eu me fizesse entender, e assim fosse entendido. E lá se foi meu sonho dourado de realizar, com as palavras, o que Pablo Picasso fez no campo da pintura, ou que um número incalculável de ídolos do jazz realizou em termos musicais. Se desobedecesse às regras de pontuação, se desse às palavras um significado incomum, e ainda por cima as dispusesse ao acaso, simplesmente não seria compreendido. Portanto, seria aconselhável que você também evitasse um estilo de redação à moda de Picasso ou dos músicos de jazz, na hipótese de ter algo que valha a pena ser dito, e de querer ser compreendido.

Os leitores desejam que as páginas por nós escritas não sejam muito diferentes das páginas que já leram. Por quê? Porque eles próprios têm uma tarefa espinhosa a cumprir, e necessitam de toda a ajuda que pudermos dar.

7. Tenha pena dos leitores
Eles são obrigados a identificar milhares de pequenos símbolos impressos no papel e a compreender, de imediato, seu sentido. São obrigados a ler — uma arte tão complexa que a maior parte dos seres humanos não consegue dominá-la completamente, mesmo depois de estudá-la durante todo o curso primário e secundário — doze longos anos! Assim, esta análise deve ser encerrada com o reconhecimento de um fato: nossas alternativas estilísticas não são abundantes nem glamurosas, uma vez que nossos leitores estão fadados a ser muito imperfeitos. Nosso público exige que sejamos professores compreensivos e pacientes, eternamente dispostos a simplificar e esclarecer — enquanto nós, escritores, por nossa vez, preferíamos alçar altos vôos.

São essas as más notícias. Mas, de outro lado, protegidos pela Constituição americana, podemos escrever o que desejarmos, sem receio de punição. Essa falta de limites para a escolha de um tema é o aspecto mais significativo de nossos estilos literários.

8. Para conselhos mais detalhados
Aos leitores interessados em uma discussão mais específica sobre estilos literários, sob um enfoque mais técnico, informo que há boas obras sobre o assunto, como, em inglês, The elements of style, de William Strunk Jr. e E. B. White.

Kurt Vonnegut (1922-2007)
Escritor americano, autor de vários romances, ensaios e peças de teatro, entre os quais Player Piano (Revolução no Futuro) de 1952, Cat’s Cradle de 1963, Slaughterhouse-Five (Matadouro 5) de 1969, Breakfast of Champions (Café-da-Manhã dos Campeões) de 1973, Galápagos de 1985 e Look at the Birdie de 2009, uma coleção póstuma de contos e ensaios.

Este artigo foi publicado na Revista do Livro nº 51 - 1983.

2 comentários:

NalvinhaFigueirôa disse...

Gostei desse artigo, lí com atenção pois entre outras coisas, dá valiosas dicas de como proceder ao escrever um texto e auxilia na dinâmica com o leitor.

Clube dos Novos Autores - CNA disse...

De muita valia este artigo, fiquei muito feliz em encontrá-lo; sou escritora e há tempos procurava algo deste conteúdo para passar umas dicas, estou até add o blog, pois quero passar mais vezes por aqui, afim de encontrar mais pérolas como esta.
Um grande abraço!
Adriana